quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Crónicas da Serra Leoa, #6

Aqui vai o 6º e último relato.
Muito obrigada ao Miguel Sena por esta partilha e momentos divertidos e, mais uma vez sorry pelo atraso na publicação..


2 Meses e um Punhado de Dias
(para ler ao som de: Harry Belafonte - "Banana Boat (Day O)").

Acabo o trabalho na cidade e todos os dias tenho umas simpáticas 2 horas de trânsito à minha espera até chegar a casa. Chego a casa e percebo que não tenho luz, geralmente quando isto acontece vou correr para a praia. Já corro sozinho, estou um menino crescido.
Chego outra vez a casa e para além de ainda não haver luz, o gerador está avariado, ajudo a arranjar o gerador. Tento entrar no quarto, mas a fechadura resolveu fazer greve. Arranjo a fechadura. Vou tomar banho, não há água. Espero que encham o reservatório. Vou tentar tomar banho outra vez, mas não estou sozinho, baratas por todo o lado. Mato as baratas. Vou jantar e é galinha outra vez. A desculpa é sempre TIA, This is Africa, eu cá farto-me de rir.

Normalmente quando acabo de correr já é noite. Ainda tenho de andar um pouco a pé até chegar a casa e passo pelo comércio que se faz pelas ruas cheias de pó, carros, motas, pessoas e buzinas. Não há luz nas ruas, são usadas lamparinas para iluminar cada “quiosque” o que cria um ambiente absolutamente espantoso que por incrível que pareça me acalma. Nestes quiosques pode-se encontrar de tudo, desde pão até telemóveis de última geração, chineses está claro.

Já vos falei sobre o meu amigo que faz magia por 5000 Le, pondo os meus sapatos como novos. O que eu não vos disse é que ele fala português! Bem, uma espécie de português da Guiné-Bissau. A forma como o descobri foi ainda mais engraçado, quando vi a escova bem preta a aproximar-se das minhas queridas calças beges pensei alto e disse em português: “Espero bem que não me sujes!”. A resposta foi um sorriso. Agora, segundo ele (não consegui perceber o nome), sou seu irmão, traduzindo para um europeu significa que quer uma gorjeta maior da próxima vez. 

Uma história semelhante aconteceu-me no outro dia, enquanto estava a tentar trabalhar no meu fantástico escritório, aka (also knowed as) forno com ventoinhas que não funcionam com pessoas que nunca viram um computador à frente e que vão ao internet café para falar aos berros ao telemóvel e ver televisão; como devem imaginar pode ser bastante incomodativo e desagradável ao ponto de eu, num puro momento de descompressão larguei um bom calão português recheado com um murro na mesa, o mais engraçado foi que o meu parceiro do lado interrompeu a luta que estava a ter com o telemóvel e pediu-me desculpa. Fui tão genuíno que fiquei a pensar se ele também percebia português. É por estas e por outras que é difícil ficar zangado com esta gente, no final acabo sempre por rir.


Para me redimir do pecado no internet café fui convidado para ir à igreja. Já sabia que não iria para uma missa convencional (convencional no sentido de diferente do que estou habituado, religião é sempre um tema complicado tenho de ter cuidado com a escrita), mas por incrível que pareça conseguiu superar as minhas expectativas. Fui a uma missa da igreja Winners, que são qualquer coisa parecida com o Reino de Deus em Portugal. Um massacre… Um palco rodeado de cadeiras com pessoas que ouviam atentamente o pastor gritar ao microfone a agradecer o facto de aquela missa estar a ser transmitida por comunicação satélite, repetindo vezes sem conta GPS até eu não conseguir pensar em mais nada, funciona mesmo! Mãos no ar, música, danças, peças de teatro e envelopes com dinheiro. No final fui abençoado e inscrito na comunidade, sendo abençoado pelo pastor em pleno palco perante o júbilo da plateia, “God save white boy!”. Não me vou esquecer disto.

Não há semana que passe em que eu não utilize o famoso transporte motorizado Okada! Estou sempre a ser aldrabado nos preços das viagens, mas ontem cuspi um “white boy noh stupid-oh!” o meu crioulo deve ter sido de uma perfeição tal que o diabo do asfalto fez-me um preço que eu penso nem os locais conseguem!

Nas ruas de Freetown vê-se muita gente mutilada. Sempre a pedir dinheiro, mas com esquemas organizados, não é fácil resistir ao pedido. Durante a guerra uma das perguntas mais frequentes era: “Left or right?”, nem me consigo imaginar numa situação dessas. A guerra por aqui não foi brincadeira, mas o país quer sair da sombra da guerra. De facto, já acabou há 10 anos, e para ser franco nunca me senti inseguro. O potencial existe, o país é lindo, as pessoas é que precisam de mudar um pouco.

by Miguel Sena

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